Democratas tampouco venceriam Trump com homem candidato, diz cientista política
(FOLHAPRESS) - A derrota de Kamala Harris para Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos encerrou a possibilidade de uma mulher comandar a maior economia do mundo pela primeira vez nos próximos quatro anos.
Para a cientista política Jennifer Piscopo, professora de gênero e política da universidade inglesa Royal Holloway, a resposta não é tão simples. Ela defende que um candidato democrata homem também teria dificuldades contra o que chama de uma liderança hipermasculina populista de Trump.
"O modelo Trump de liderança não está disponível para os democratas, incluindo homens democratas", afirma Piscopo, especialista em representação feminina na política.
Ela também afirma temer que a derrota de duas mulheres para Trump -Kamala em 2024 e Hillary Clinton em 2016- crie dificuldades dentro do Partido Democrata para as próximas aspirantes à Presidência. "Nenhuma mulher poderia ter vencido Trump, mas isso não significa que uma mulher nunca poderá vencer uma eleição presidencial nos Estados Unidos."
*
PERGUNTA - No pós-eleição, muitas análises atribuem a derrota de Kamala Harris para Donald Trump ao fato de ela ser uma mulher. Quão central a sra. acha que o gênero foi nessa derrota?
JENNIFER PISCOPO - Se a gente olhar para 2016, Hillary Clinton venceu no voto popular. Não é o caso de Kamala Harris, mas podemos dizer que uma mulher pode vencer e já venceu no voto popular nos Estados Unidos.
Dito isso, certamente gênero foi importante nessa eleição e não de um jeito que favoreceu Kamala. Há o fato de que Kamala é mulher, mas também o de que Trump usou o seu próprio gênero para atacá-la estrategicamente e se colocar nesse lugar de masculinidade hegemônica.
Isso é uma parte central da campanha dele, essa bravata de ser muito decisivo, tipo "eu posso resolver no primeiro dia". E ele usa isso contra Kamala, ia em entrevistas dizer que ela é fraca, que líderes mundiais não vão ouvi-la.
Ele estava obviamente plantando uma ideia de que uma mulher jamais pode ser como Trump, com essa masculinidade performativa. Não fica claro como seria a questão do gênero se o candidato republicano fosse alguém mais mainstream, um Mitt Romney, por exemplo. Inclusive porque Kamala fez uma campanha muito menos centrada no fato de ser mulher do que [Hillary] Clinton.
P - A sra. mencionou como Kamala tentou tirar o foco do fato de ser mulher, algo que foi muito central na campanha de Hillary em 2016. Essa foi uma boa estratégia?
JP - É difícil saber. Está claro que foi uma escolha estratégica de não concorrer focando ser a primeira mulher, a primeira não branca. Eu acho que até na questão do aborto, central na campanha, Kamala fala disso porque é importante para os democratas em termos de política pública. Ela fala tanto de aborto menos por ser uma mulher e mais porque era algo programaticamente importante para os democratas.
Uma dúvida maior é quanto os democratas devem responder à narrativa de Trump, ou quanto devem ignorá-la. O que Kamala fez foi tentar não dar corda para Trump, que tentava colocá-la como uma candidata identitária. Então ela ignora gênero e raça, e está claro que isso não funcionou.
Então o que fica é a questão: seria melhor tentar inspirar sua própria coalizão em vez de tentar apelar aos republicanos moderados? Eu não sei, sinceramente.
P - Porque a sra. acha que essa campanha de "masculinidade exacerbada" tem apelo com o eleitor americano atualmente?
JP - Um elemento que claramente ressoou com os eleitores foi esse de "eu consigo resolver em um dia" que, para mim, tem um forte cheiro de autoritarismo ou autocracia. Mas eu acho que há eleitores que sentem que as coisas não estão funcionando e que processos democráticos de implementação de políticas demoram demais, são complicados demais, e eles querem uma mudança agora.
Eles sabem que Trump não é capaz de resolver a Guerra da Ucrânia ou a economia em um dia, mas o fato de que ele vende essa imagem de decisivo e de "agente de mudança" faz muito sentido para esse eleitorado cansado de esperar.
P - O fato de duas mulheres terem perdido eleições para Trump impacta a possibilidade de candidatas concorrerem no futuro?
JP - Eu particularmente acho que em um momento em que o eleitorado queria essa figura hipermasculina, populista Esse é um modelo de liderança que simplesmente não está disponível para as mulheres.
Tirando a Giorgia Meloni [primeira-ministra da Itália], nós não vimos mulheres sendo eleitas para cargos executivos por terem adotado esse tipo de liderança de Trump. As mulheres costumam ser eleitas em pleitos programáticos, especialmente na América Latina, e normalmente como sucessoras de um presidente popular.
Então há vários caminhos para homens chegarem à Presidência, mas as mulheres têm um perfil específico que parece ser o que as leva para a vitória. Então eu acho que nenhuma mulher poderia ter vencido Trump, mas isso não significa que uma mulher nunca poderia vencer uma eleição presidencial nos EUA.
Mas essa análise nuançada talvez não seja a que vai prevalecer entre os democratas e o público americano. Eles vão dizer "mulheres perderam duas vezes, então mulheres não devem concorrer", e isso é muito triste.
P - A sra. diz que nenhuma mulher poderia ter vencido Trump. Um candidato democrata homem teria melhores chances?
JP - Eu acho que não. O Partido Democrata é um partido programático à esquerda, que está concorrendo com base em políticas, entregas que foram feitas pela gestão Biden. Mas essa não foi uma eleição sobre políticas. Foi uma eleição sobre emoções, e Trump conseguiu mobilizar as emoções muito bem, ainda que fossem emoções ruins, de raiva, ressentimento.
Além disso, o partido tomou a decisão de não quebrar algumas das regras de civilidade em campanha que o Partido Republicano quebrou, como a de usar amplamente a desinformação ou xingar oponentes, dizer que gostaria de ver membros do próprio partido fuzilados.
O modelo Trump de liderança não está disponível para os democratas, incluindo os homens democratas.
*
RAIO-X | JENNIFER PISCOPO
Professora de gênero e política da universidade Royal Holloway, em Londres, especializada em participação feminina eleitoral e política. Coautora do livro "The Impact of Gender Quotas" (Oxford University Press, 2012) e coeditora da revista científica European Journal of Politics and Gender. É doutora pela Universidade da Califórnia (San Diego) e mestre pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
COMENTÁRIOS